Da comunicação rural aos estudos de audiência: influências da obra de Paulo
Publicado em 14/10/2009
Introdução
Essa reflexão tem como objetivo identificar e analisar brevemente as influências da obra freireana nas seguintes esferas dos estudos e da pesquisa em comunicação social: a comunicação rural, a comunicação alternativa e/ou popular, os estudos culturais e a comunicação (compreendidos nas suas vertentes latino-americanas dos estudos de recepção e de educação para a comunicação). O resgate dessas influências permite apontar para a relevância que podem assumir as (re)leituras da obra de Paulo Freire para a compreensão das novas tendências que emergem hoje no cenário da pesquisa em comunicação.
1.1 Das primeiras aproximações com a obra freireana
A única oportunidade em que Paulo Freire se referiu explicitamente à comunicação foi, segundo Venício Artur de Lima, em um trabalho escrito em 1968 para o Instituto de Capacitação e Investigação em Reforma Agrária (ICIRA), no Chile. Freire buscava formular uma crítica às atividades de extensão desenvolvidas pelos agrônomos assim como oferecer um texto-base para a discussão em um grupo disciplinar composto por especialistas ligados ao programa de Reforma Agrária. O ensaio, intitulado Extensão ou Comunicação, constitui "uma crítica radical à tradição difusionista seguida pelos estudos de comunicação norte-americanos que, na época, tinham grande penetração na América Latina, sobre a rubrica geral de comunicação e desenvolvimento" (LIMA, 1981:60). Freire argumenta que a concepção extensionista implica transmissão, transferência, invasão e não comunicação, compreendida como "co-participação de sujeitos no ato de conhecer".
Não é por acaso que Extensão ou Comunicação tenha se constituído em uma das primeiras obras freireanas a alcançar popularidade entre professores e pesquisadores da comunicação, principalmente entre aqueles dedicados ao ensino da comunicação rural. As críticas formuladas por Freire abrem perspectiva para o questionamento do caráter difusionista que vinha pautando a inserção da comunicação rural como disciplina nos currículos de faculdades de comunicação de universidades brasileiras entre os anos 70 e 80. Posteriormente, esse e outros escritos de Paulo Freire, como Pedagogia do Oprimido e Educação como Prática da Liberdade, vão assumindo relevância para os estudos de comunicação de uma forma mais abrangente.
A concepção freireana de educação é a principal inspiradora de experiências de comunicação alternativa e popular que se desenvolvem no meio urbano vinculadas a movimentos sociais, sindicais e a comunidades eclesiais de base nas décadas de 70 e 80. São as leituras de Freire que abrem caminho para uma outra compreensão do fenômeno da comunicação no âmbito da Igreja Católica no início dos anos 70. Motivados por mudanças propostas pelo Concílio do Vaticano II e pela Conferência de Medelin da Colômbia, especialmente os setores mais progressistas da Igreja, passam a valorizar a utilização dos meios não massivos na evangelização, opção reafirmada, posteriormente, pela III Conferência Episcopal realizada em Puebla, no México.
Na esfera ou não da Igreja, a obra de Paulo Freire torna-se referência obrigatória tanto em projetos e experiências que envolvem o uso de meios de comunicação impressa (jornais, boletins, panfletos, folhetos, murais), radiofônicos (emissoras de alto-falantes) e audiovisuais (slides, vídeo), quanto na compreensão de outras práticas e manifestações comunicativas que não são mediadas por veículos de comunicação, mas que envolvem dinâmicas interpessoais, inter-grupais e comunitárias (reuniões, encontros, liturgias, assembléias, etc.).
Associada à herança de militante católico do próprio Freire, o exercício da militância de muitos acadêmicos nas CEBs e em outro setores da chamada Igreja progressista, ou, ainda, nos movimentos populares e sindicais, conduz à Universidade as reflexões de Paulo Freire, seja no âmbito do ensino de disciplinas como as comunicações alternativa e comunitária, seja no âmbito dos projetos de extensão associados a essas disciplinas. As contribuições freireanas possibilitam, sobretudo, associar intervenção social e reflexão teórica, atribuindo à comunicação comunitária um caráter de ruptura com o isolamento do fazer acadêmico. A obra do autor é utilizada, além disso, como referencial teórico de projetos de pesquisas que têm como tema a comunicação alternativa e/ou popular. Das 33 terminologias identificadas pela pesquisadora Regina Festa para nomear e definir a comunicação alternativa a partir dos meios utilizados, dos conteúdos, funções, nível de participação, etc, algumas delas explicitam diretamente a influência freireana nesse campo, como é o caso da comunicação libertadora, da comunicação do oprimido e da comunicação dialógica. (FESTA, 1984)
A concepção educativa construída por Freire constitui-se, para teóricos como Mario Kaplún e Juan Diaz Bordenave, o ponto de partida para a explicitação do conceito de comunicação popular. Ambos identificam três modelos educativos que são úteis à análise das experiências de comunicação desenvolvidas no âmbito dos movimentos sociais: um primeiro, que põe ênfase no conteúdo; um segundo, que enfatiza os efeitos; e um terceiro, que privilegia o processo. Embora não sejam puros, os três modelos acabam se mesclando em ações educativas concretas no campo da comunicação. No entanto, Kaplún não deixa de reconhecer no modelo que privilegia o processo as possibilidades de participação na comunicação è medida em que permite que emissores e receptores tenham a mesma oportunidade não apenas de responderem à mensagem recebida e reagirem diante delas, como de gerarem suas próprias mensagens. (KAPLÚN, 1978).
Ao propor a transformação do modelo da comunicação massiva, a comunicação popular aponta ainda para uma consonância com a dimensão política que atravessa a obra freireana, cuja síntese é retomada por Lima: "O conhecimento é construído através das relações entre os seres humanos e o mundo, e a comunicação se define como a situação social em que as pessoas criam conhecimentos juntas, ao invés de transmiti-lo, dá-lo ou impô-lo. A comunicação deve ser vivida por seres humanos como a sua vocação, vivida em sua dimensão política." (LIMA, 1981:64).
Nessa perspectiva, a comunicação popular constitui-se, em sua origem, como uma reação ao modelo hegemônico fundamentado na noção mecânica de comunicação como transmissão de informação de fontes ativas a receptores passivos, perspectiva orientadora, inclusive, da estratégia expansionista dos Estados Unidos em relação à América Latina. Os projetos de comunicação popular convertem-se, ainda, em portadores das insatisfações de movimentos sociais e de setores sociedade civil com as ditaduras militares que, entre os anos 70 e 80, predominavam na maioria dos países latino-americanos, para as quais, a comunicação massiva se constituiu em um dos principais instrumentos para a difusão e manutenção de seus projetos políticos.
No Brasil, a terminologia alternativa nomeia, nessa época, principalmente aquela comunicação feita pelos intelectuais que, em resistência à ditadura, tratam de criar jornais e outros veículos de expressão própria como Opinião, Pasquim e Coojornal. Ao mesmo tempo, o termo popular designa a comunicação desenvolvida no âmbito dos movimentos de base ou populares (das mulheres, das associações de moradores, das pastorais, etc), onde são produzidos boletins mimeografados, panfletos, rádios de alto falantes, etc. Ao lado dessas duas expressões, situa-se, ainda, a comunicação massiva, representada, especialmente pela Rede Globo, em que os interesses do capital internacional se desenvolvem em aliança com os projetos políticos e econômicos nacionais.
1.2 Das (re) leituras possíveis
Cabe dizer que, nesse cenário, a obra de Paulo Freire ajuda a consolidar as bases para o entendimento das inter-relações entre comunicação, educação e cultura, cujos desdobramentos refletem-se, mais tarde, no desenvolvimento de uma vertente denominada de estudos culturais e comunicação. Herdeira dos estudos culturais ingleses, essa vertente encontra sua especificidade no contexto latino-americano a partir do final da década de 80 através de investigadores como o colombiano Jesus Martin-Barbero e os mexicanos Nestor Garcia Canclini e Guillermo Orozco Goméz, cujas reflexões apontam para a construção de uma trajetória comum: a compreensão da comunicação no marco do processo das culturas em que a compreeensão do fenômeno comunicativo não se esgota em conceitos e critérios como canais, meios, códigos, mensagens, informação.
O entendimento da comunicação é reorientado a uma revalorização do universo cultural e do cotidiano dos sujeitos como mediadores dos sentidos produzidos no campo da recepção das mensagens difundidas pelos meios massivos de comunicação. Suscetíveis de múltiplas interpretações, essas mensagens são mais do que nunca eminentemente polissêmicas e seus sentidos ou significados "negociados" na esfera da recepção. Todo um conjunto de investigações no âmbito da audiência dos meios de comunicação de massa, sobretudo da televisão, buscam entender o que fazem os públicos com os meios de comunicação de massa e as mensagens que emitem e, por outro lado, o papel que desempenham a cultura e as instituições sociais como mediadores no consumo das mensagens propostas.
Como estratégia metodológica para estudar as interações de diferentes segmentos da audiência (jovens, mulheres, educadores, etc) com a televisão, Orozco Gómez sugere os super-temas, compreendidos como aqueles universos temáticos que são cotidianamente importantes para a audiência. Embora não sejam equivalentes, os super-temas têm sentido similar, segundo o autor, aos núcleos geradores ou universos temáticos propostos por Paulo Freira na obra A Pedagogia do Oprimido. A saúde, a educação dos filhos, as sexualidade ou AIDS, a corrupção política, a economia, a inflação são super-temas que possibilitam o intercâmbio de idéias, atitudes ou opiniões ou a tomada de posições por parte da audiência ou dos públicos pesquisados. (OROZCO GOMÉZ, 1996)
Mas é sobretudo em conexão com o enfoque denominado de educação para a recepção ou educação para os meios de comunicação que Orozco Gómez assume a direta influência de Freire tanto na sua formação como comunicador e educador popular quanto de pesquisador dedicado, nos últimos 20 anos, ao estudo da relação entre comunicação e educação. No Brasil, a vertente da educação para a comunicação é representada, sobretudo, pela União Cristã Brasileira de Comunicação (UCBC), ONG que, a partir dos anos 70, incorpora também os pressupostos freireanos como linha orientadora de sua intervenção junto a movimentos sociais e a sistemas de educação forma,l através de cursos, oficinas e assessorias no âmbito do Projeto de Leitura Crítica da Comunicação, ampliado, mais tarde, para Projeto de Educação para a Comunicação.
A presença e relevância assumida pelas leituras freireanas nos estudos e pesquisa em comunicação reafirmam, assim, as interfaces com outros campos do conhecimento - incluindo a educação - em torno das quais se constitui a própria especificidade do campo dos estudos e, comunicação. Mas a contribuição freireana desponta especialmente quando se trata de atribuir significados e propor compreensões acerca de um fazer comunicativo que questione a simples reprodução de perspectivas norte-americanas e européias no contexto da pesquisa em comunicação e da própria constituição das faculdades de comunicação. Tal perspectiva não assegurou, contudo, que a obra de Paulo Freire tenha escapado a leituras reducionistas, seja a partir de sua conversão em fórmulas de intervenção na realidade, sobretudo no âmbito de determinados projetos de extensão universitária, seja simplesmente a partir de "um politicamente correto", cuja popularidade alcançada pelo educador brasileiro não permitia ignorá-lo, impondo-o como referência obrigatória.
Outro sintoma de uma débil apropriação da obra freireana é a escassa referência a obras do autor que dizem respeito diretamente a temas e interfaces de crescente interesse das áreas da comunicação. Exemplo é o volume 2 de Sobre Educação (Diálogos), em que Paulo Freire e Sergio Guimarães, abordam a relação entre meios de comunicação de massa e processos educativos. Muitas das questões referentes a essa relação discutidas pelos dois autores pautaram e ainda pautam a preocupação tanto de animadores quanto de pesquisadores vinculados a projetos de leitura crítica ou de educação para a comunicação, embora sem que a contribuição freireana tenha sido reconhecida ou simplesmente incorporada. (FREIRE E GUIMARÃES, 1984).
No campo da comunicação alternativa e também dos estudos culturais latino-americanos, são igualmente escassas as referências à obra Pedagogia da Pergunta, em que Paulo Freire e Antonio Faundez privilegiam a abordagem da cultura no processo educativo, apontando para questões que se tornaram centrais para as pesquisas de audiência, sobretudo no que diz respeito à compreensão do cotidiano e do universo cultural dos receptores. (FREIRE E FAUNDEZ, 1985)
A essa carência de aprofundamento da obra do autor se acresce hoje a necessidade de provocar releituras de Freire que consolidem a reflexão em torno das tendências que dominam hoje a pesquisa em comunicação. Á luz de algumas das concepções freireanas, o arrefecimento dos estudos do "popular" nas investigações em comunicação pode ser lido como a urgência de uma auto-crítica ideológica e política que conduza a uma revisão radical do divórcio que tem pautado as relações das esquerdas e dos movimentos sociais com a mídia. Em outra perspectiva, a retomada de Paulo Freire pode ser útil para o resgate dos teores pedagógico e político nas reflexões sobre as chamadas novas tecnologias da comunicação, um emergente campo investigativo cujas abordagens têm assumido, de forma crescente, um cunho instrumental e tecnocrático. Por fim, caberia indagar quais as possíveis leituras freireanas em um tempo em que a mídia se converte na esfera privilegiada de gestão das demandas e reivindicações políticas e culturais das sociedades contemporâneas.
Bibliografia
1. BERGER, Christa. Movimientos sociales y comunicación en Brasil. Comunicación y Sociedad. Guadalajara, nº 9, p. 9-27, maio./ago. 1990.
2. COGO, Denise Maria. No ar ... uma rádio comunitária. São Paulo, Paulinas, 1998.
3. FESTA, Regina. Comunicação popular e alternativa - a realidade e as utopias. São Bernardo, IMS, 1984.(dissertação de mestrado).
4. FREIRE, Paulo e FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.
5. FREIRE, Paulo e GUIMARÃES, Sergio. Sobre educação: diálogos. Volume II . Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984.
6. FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. 21ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.
7. FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? 7ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983.
8. GARCIA CANCLINI, Néstor. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro, UFRJ, 1995.
9. KAPLUN, Mário. Producción de programas de radio. Quito, CIESPAL, 1978.
10. LIMA, Venício de Artur. Comunicação e cultura: as idéias de Paulo Freire. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981.
11. MARTIN-BARBERO, Jesus. De los medios a las mediaciones. Mexico, Gistavo Gilli, 1987.
12. OROZCO GOMEZ, Guillermo Orozco. La investigación en comunicación desde la perspectiva cualitativa. La Plata, Universidad Nacional de la Plata, 1996.

(1)Professora do Curso de Ciências da Comunicação e ao Programa de Pós-Graduação em Ciências

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